No momento em que o debate sobre a construção de uma base curricular comum no Brasil começa a se fortalecer, torna-se imprescindível um mergulho nos processos e modelos realizados ao redor do mundo. Uma das fontes mais ricas em lições e inspirações é a experiência de construção e implementação do Currículo Nacional Australiano, desenvolvido a partir da inquietação do país com as desigualdades educacionais e a preocupação com o seu papel como nação no cenário global.
Na Austrália, que é um país federativo, a responsabilidade pela educação escolar é predominantemente dos estados e territórios, que já contavam com seus próprios documentos curriculares, o que gerava disparidades entre os desempenhos dos estudantes de diferentes regiões. Além disso, a diversidade cultural de sua população configurou um desafio para que todos os alunos pudessem se ver representados. Ainda assim, o país construiu um currículo nacional conciso e objetivo, que deixa claro quais são os conteúdos a serem ensinados, o que os estudantes devem demonstrar como resultado e como as habilidades podem ser desenvolvidas e verificadas. Tudo isso complementado por um material de apoio com exemplos reais que auxiliam a implementação do currículo nas escolas.
Em passagem pelo Brasil para a Reunião da ABAVE (Associação Brasileira de Avaliação Educacional), Barry McGaw, presidente do conselho da ACARA (Australian Curriculum Assessment and Reporting Authority) – entidade australiana responsável pelo desenvolvimento e implementação do currículo nacional –, explicou que o objetivo é promover a equidade e a qualidade educacional independentemente de fatores como origem social. “A demografia não deve determinar o destino. Um dos caminhos para reduzir o elo entre condição social e performance escolar é desenvolver um currículo nacional que se destina a elevar as expectativas de todos os alunos.”
Para isso, foi preciso começar do zero, de acordo com Phil Lambert, gerente geral da ACARA. “A Declaração de Melbourne (documento que traçou os objetivos educacionais para esta década e estabeleceu a criação do currículo nacional) foi um ponto de partida. A partir daí, foi como encarar uma página em branco. Usar os currículos elaborados pelos oito estados e territórios como base seria chegar a um mínimo denominador comum que não nos interessava. Em vez disso, olhamos para as melhores práticas em todo o mundo e dispomos dos melhores talentos no país em cada área de conhecimento”, esclarece Lambert em uma apresentação disponibilizada pela instituição.
Processo de construção
O criação do currículo nacional da Austrália deu-se em quatro fases, sendo a primeira a definição de seu formato e desenho do currículo, seguida pelo seu desenvolvimento, pela sua implementação (que ainda está ocorrendo) e, por fim, pelo seu monitoramento e avaliação. A construção iniciou-se em 2008, quando a ACARA elaborou, em parceria com especialistas e professores, os currículos de inglês, matemática, história e ciências da educação básica. O processo contou também com consultas à população pela internet. Depois que os currículos dessas disciplinas foram aprovados pelo conselho de ministros de Educação, em 2010, seguiu-se o desenvolvimento do conteúdo relativo a outras áreas de aprendizagem.
No total, o currículo australiano foi desenvolvido em torno de três eixos: oito áreas de aprendizagem, incluindo as tradicionalmente importantes e outras adequadas ao século 21 (inglês,
matemática, ciências, ciências humanas e sociais, artes, tecnologias, educação física e línguas); sete capacidades gerais, necessárias para o futuro pessoal e profissional dos alunos (letramento, habilidades numéricas, capacidade de informação e comunicação tecnológica, pensamento crítico e criativo, capacidades pessoais e sociais, compreensão ética e compreensão intercultural) e três temas transversais prioritários, que exploram contextos atuais e históricos (História e Cultura dos Aborígenes e dos Indígenas das ilhas do Estreito de Torres; Sustentabilidade; e Ásia e Engajamento da Austrália com a Ásia).
Implementação nas escolas
A Austrália definiu que 80% do currículo das escolas deve ser preenchido pela base curricular comum e os 20% restantes podem ser destinados aos conteúdos locais e atividades de cada instituição de ensino. Os professores podem organizar o ensino de forma autônoma, desde que sigam o que foi estabelecido como aprendizado em cada etapa educacional. “As escolas australianas, na maioria dos casos, não utilizam livros didáticos, mas existem livros produzidos por editoras comerciais. Eles são – ou pelo menos começaram a ser – produzidos alinhados com o currículo nacional”, explica Barry McGaw em entrevista publicada na última edição do Cadernos Cenpec, publicação do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária.
Além disso, por meio do currículo nacional, eles têm acesso a exemplos reais de trabalhos de alunos, com comentários sobre os pontos positivos e negativos e os níveis de desempenho esperados para cada conteúdo, e a um banco de dados de recursos eletrônicos com ferramentas de aprendizagem, disponível no site Scootle (
http://www.scootle.edu.au/), criado pelo Education Services Australia, um dos órgãos nacionais relacionados à educação do país. Os avanços também dizem respeito às matrizes de avaliações externas, que estão sendo revistas para que os exames reflitam o currículo nacional, e não o contrário.
Exemplos para o Brasil
Segundo Paula Louzano, doutora em política educacional pela Universidade de Harvard e pós-doutoranda no Centro de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas em Educação da Faculdade de Educação da USP, assim como no caso australiano, a construção de uma base curricular comum no Brasil também deverá começar praticamente do zero. “Não poderia ser diferente, já que não temos nada estabelecido. Isso não quer dizer que não se possa levar em consideração as experiências estaduais e municipais. O que o Brasil não pode fazer, assim como a Austrália não fez, é encarar a base nacional como uma somatória de currículos.”
Um das principais inspirações do modelo australiano é o fato de o país ter primeiro decidido qual é a função da escola no papel que ele quer desempenhar no contexto global, para a partir de então desenvolver os eixos que regem o currículo nacional. “Por ter sido uma colônia britânica, a Austrália sempre se sentiu mais próxima à Europa do que aos seus países vizinhos, mas finalmente percebeu que era importante se aproximar deles. Se o Brasil decidir por uma visão parecida, dentro da perspectiva da América Latina, pode incluir, por exemplo, literatura latino-americana e o ensino do espanhol no currículo, já que a diferença da língua acaba isolando o país do resto do continente”, exemplifica Paula, que acrescenta que o mesmo pode ocorrer em relação à diversidade cultural, com o enfoque no ensino da cultura afro-brasileira.
Outro destaque australiano foi o entendimento de que a preocupação com a implementação do currículo deve começar já no desenho da política curricular. De acordo com Paula, é imprescindível que a sua execução seja viável e que o professor consiga apreender o que foi estabelecido. “Alguns documentos curriculares esquecem de que quem está na ponta, no caso o professor, é quem vai aplicá-lo no dia a dia. Muitos são herméticos, acadêmicos demais, com uma linguagem distante da rotina escolar. O interlocutor é o professor e o documento deve ser escrito tendo isso em mente, de forma objetiva e clara”, afirma a especialista.
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